Vande = curvo; gurūnām = aos Gurus; caranāravinde = pés de lótus;
“Prostro-me aos pés de lótus dos Gurus.” Este verso dando início ao Mantra de Abertura de prática de Ashtanga Yoga, começa por evocar a nossa humildade, reverência e a nossa de cedência do Ego. Fazer “prostrações ou curvar-me”, não tomo de algum modo como pejorativo, reduzindo-me ou subjugando-me. Mas vejo o acto em si, como um alto de dignidade de alguém que perante a força universal, perante a linha de acontecimentos do Cosmos, se dignifica de merecedor ou se coloca aberto a receber. De modo relevante, “curvando-me”, será uma forma de assumir que de facto Eu não sou de todo o condutor do grande navio do universo, da sua ordem e do seu próprio plano. Eu relembro-me sempre uma história sobre os célebres Salões de Chá Zen do Japão, que tinham por norma uma entrada com um pórtico bem mais baixo que o usual. O objectivo, bem planeado, era para que qualquer visitante, trabalhadores do campo, burgueses, nobres ou até guerreiros samurais, tivessem de se curvar, deixar as suas ferramentas de trabalho, espadas e armaduras, e qualquer coisa que desse forma à sua identidade, do lado de fora. E que entrassem simplesmente para usufruírem do Chá no interior do Salão. Da mesma forma o convite é esse, ao iniciar o Cântico ao início da prática. Aos Gurus. A toda uma linhagem de professores e discípulos. Desde o professor do meu professor, desde a verdadeira fonte de conhecimento primordial, até mim. Não só me entrego a uma sucessão e linhagem de saberes e sábios que foram transmitindo estes saberes de geração em geração, como também busco conectar-me directa ou indirectamente com a origem da sabedoria. O Guru dos primeiros Gurus, Mahaeshwara. Essa é a verdadeira entrega. Através de todos os mentores, professores, aos Gurus, a Om disponho a minha pessoa. E aí está, os pés de lótus, referindo-se à base do corpo físico daquele que segura uma mente aberta, livre e expandida, como uma flor de lótus aberta. Anológicamente referindo à planta de lótus, como uma evolução de consciência desde uma realidade escura e densa, como as raízes lamacentas do lótus, até a uma realidade de luz e alegria, como a flor, bela e plena de côr, do lótus. Pés de lótus, referindo-se a aquele sábio que já viveu estas transformações. Como as transformações desejadas manifestadas em todos os seres, entoadas no Mantras pela paz, “Tamaso mā jyotir gamaya”. O modo de nos referirmos aos pés dos nossos Gurus, e a aqueles que nos passam conhecimento, como pés de lótus também nos fazem reflectir que a sabedoria pura é consciência pura que surge do espaço universal e que no seu caminho até nós assume as mais diversas formas, linguagem, contextos, figuras, lógicas e modos de conhecimento, recolha e transferência de conhecimento, para um animal racional, mestre e sábio, de um para um, até chegar a nós. Como as flores de lótus bem vistosas, as suas folhas, caule, rizomas e raízes, desenvolvem-se desde bem submersas no escuro. Sandarśita = mostra/dá luz; svātma = meu(sva) Eu interior(atma); sukhāva = feliz/fácil; bodhe = compreensão; “Que me revela o meu Eu interior na sua feliz compreensão.” O estabelecido contacto com o Guru, o universo, revelará, e esse é o seu maior propósito, o nosso feliz e verdadeiro Eu para a sua compreensão. Não só expõe para ser visto e abre os olhos ao nosso íntimo, como também tal é exposto para sua compreensão, fácil e feliz. O contacto com o Guru será assim, essencialmente, um encontro com o nosso verdadeiro Eu. Assim deveria ser, um confronto com a nossa realidade mais interior. Por mais paradoxal que pareça o encontro com o nosso guia, é de facto o encontro com a nosso Eu individual. E este espelho acontecerá quando não existem ou deixam de existir a colisão dos egos de ambas as partes. O objectivo deste encontro e o seu entendimento é assim realçado “sukhava” , é para ser feliz. Internamente positivo, prazerosamente enriquecedor. O nosso entendimento sobre nós mesmos será completo quando obtivermos o entendimento de como funciona o nosso Eu interior feliz e equilibrado. Nihśreyase = além do bom; jāngali = da floresta; kāyamane = doutor/físico; “Alem de bom, o doutor da floresta.” Referindo-se ao doutor ou físico como ‘kāyamane”, um conhecedor do corpo físico. Conhecedor do seu mecanismo, função, dos seus mistérios, do que o assombra e de como o curar. Gosto de pensar que conhecer o corpo também significa que tal doutor também considera o corpo como um veículo de um Ser para navegar o complexo cósmico. Não se trata só de ser, o guru, um portador de sabedoria para a liberação e para conhecermos a nossa verdadeira natureza, a felicidade. Este verso já remete-nos para outra importante missão daquele a quem estamos a prostrar: preservar e trazer a saúde ao corpo. Não descartamos a nossa existência terrena e abraçamos esta plenamente. Temos o nosso guia como mestre da saúde do corpo e da sua reparação e cura. Junto do mestre e da sabedoria devida deste, encontraremos longevidade e estabilidade na vida. Vindo da floresta vem o Guru. Ou então, como eu gosto de interpretar, a floresta, a natureza densa, é o próprio Guru. Sinto o Guru como o sábio do Universo, que mergulhou dentro do si, e que o seu corpo indagou por dentro das folhagens densas das florestas, para se conhecer e dominar, tanto que se tornaram Um. Gosto de pensar que o Guru e a Floresta são confundidos, por tão próximos serem. A Floresta e as Leis da Natureza são os primeiros professores. A sabedoria reside na sua genética. Esta sabedoria que faz todos os intervenientes a saberem do seu lugar. Onde muitos diferentes canais de energia se cruzam, se formam e se desvanecem, e criam antros de energia, puro centros energéticos, fontes de vida sem fim. Além do cognoscível ‘bom’, o Sábio da floresta e a Floresta sábia, são o mais que a maior dávida. Samsāra = ciclos/hábitos ; hālāhala = venenos; moha = ilusão ; śāntyai = pacíficando; “Que o veneno cíclico da ilusão pacífica.” Uma vida condicionada permanece sem mudanças quando essa está coberta, como se camuflada no Cosmos, por um manto de ilusão, que faz esta vida parecer apenas, somente parecer, livre e expansiva. Samsāra, o ciclo da vida e morte, e dentro desta todos os hábitos instituídos que nos mantém numa continua dança entre felicidade e tristeza, sucesso e insucesso, êxtase e depressão, de ragas (atrações) e dweshas (repulsões), etc… Tal como Patanjali definiu o yoga nos Yoga Sutras - Yogascitta vritti nirodha 1:2 - (o cessar das flutuações da mente é o yoga) nos remete para as flutuações (vrittis) da mente como obstáculo para o yoga, também neste verso os ciclos da vida (samsāra) nos são apresentados como veneno, o obstáculo, para nos realizarmos em paz e união com o Cosmos. Serão, no entanto, estes vrittis ou samsāras são obstáculos porque a nossa mente se identifica com eles e a nossa vida acaba sendo feita em volta deles. Mas não tem que ser assim. O conhecimento da nossa verdadeira natureza integrado na nossa vida permitirá leveza para fluirmos pelas flutuações mentais e os respectivos ciclos de vida com graciosidade e equanimidade, sem nos identificarmos com meras fases e estados passageiros e termos sempre em perspectiva o yoga como maior propósito. O guru, o mestre, a fonte de conhecimento Universal - o Universo em si mesmo e em nós - a quem nos prostramos, vem nos dar śāntih (paz) com o fim do perpétuo ciclo ilusório de sofrimento. O veneno (hālāhala) é a ignorância origem do condicionamento e da limitação. A ignorância e o condicionamento mental são o véu, a ilusão que encobre a verdade. A paz é a liberação. A paz é o soltar das amarras. A paz é o estado de onde toda a verdade fica acessível, de onde conseguimos olhar sem cultivar na nossa frente cada vez mais o mal com que lutamos. Porque violência gera violência. E a paz é o que quebra a cadeia. A paz interna é de facto, subconscientemente que seja, o objectivo primordial de todos nós. Neste verso está exposto o maior objectivo do sādakha (aspirante espiritual) , do yogi. Neste verso se demonstra uma das definições do yoga. E neste verso deve estar a mente do praticante em contemplação do seu significado, trazendo essa mentalização e objectivo para o dia-a-dia da sua vida. Ābāhu = até aos ombros; puruśākāram = forma de Homem; “Até aos ombros a forma do Ser Humano (puruśa).” Puruśa palavra em sânscrito que se designa a Consciência Universal, mas que também é usada, em função do contexto, com o significado de Ser Humano (ou ‘Homem’). É importante ter em conta que esta segunda parte do que chamamos do mantra de abertura da prática de Ashtanga, é de facto, outro mantra retirado de outra parte diferente da literatura védica. Portanto, ficamos a saber que este mantra de abertura da prática de Ashtanga Yoga, são então dois mantras compilados por Pattabhi Jois (o criador da prática de Ashtanga Vinyasa Yoga) para consagrar a prática. Esta segunda parte dá um rosto, um nome e um conteúdo descritivo ao Guru a que nos prostramos na primeira parte do mantra. Purusākaram - a forma de Homem, Ābāhu - até aos ombros. Podemos literalmente interpretar estes versos, tal como pode fazer um escultor a dar forma à sua peça. Mas eu gosto de pensar que este Guru decidiu colocar nos seus ombros a Humanidade. Tal como Buddha fez questão de levar a cabo como sua missão de vida descobrir a origem do sofrimento da Humanidade. Também o nosso Guru aqui venerado, trouxe para sua responsabilidade o pesar da humanidade e decidiu por suas próprias mãos conectar-se com o que está no âmago das dores Humanas e resolver de expor obstáculos, um caminho e solução para o comum dos mortais. Assim o fez Patanjali. Śanka = concha; chakra = disco; asi = espada; dhārinam = segurando “Segurando uma Concha, um Disco e uma Espada.” No tom descritivo que esta segunda parte do Mantra de Abertura mantém, são estes os ‘totens’ ou objectos sagrados que encaixam na descrição deste Guru que invocamos ao entoar o mantra. Guru que ainda não foi chamado pelo nome. Talvez o nome o possa vincular mais a um estatuto limitado, em vez de permitir o carácter omnisciente e completo que o verdadeiro Guru (Mahaeshwara) é. Mas será assim mesmo?! Śanka, Chākra e Asi (a concha, o disco e a espada) como armas sagradas, ou as ferramentas sagradas, que servem o nosso Guru em Corpo, Espírito e Mente de cumprir o seu propósito e eliminar-nos dos nossos venenos. Śanka, a concha, que quando utilizada nos conecta às mais altas profundezas do Mar, fazendo vibrar o nosso humilde chamado pela Terra e pelo além do Espaço. Esta ferramenta pede a nossa força vital, e é através dela que vamos fazer o Sopro e evocar a sabedoria da Terra, o Universo e o Dharma no nosso assim caminho. Assim o faz O Guru. O prana gerado para soprar na concha surge desde a nossa essência e é daí que vem a intenção de nos conectar com o Universo, e chamar apoio, segurança e companhia bem-aventurada. Chākra, o disco, ou melhor o disco de luz, que representa o universo inteiro e o seu elemento de Vastidão. Representado por um disco de luz tal como a nossa galáxia e esse aglomerado de nuvens de poeira branca infinito e incompreensível que circulam em redor do centro da galáxia. Normalmente o centro do disco da galáxia assenta, em representação, sobre um dedo apontado para cima. Denota uma ligação ao vasto e infinito potencial, a expansividade e continua evolução do Universo e da verdadeira natureza do Eu. Asi, a espada, símbolo de dristhi, descernimento, concentração, pureza e foco mental. É ferramenta que denota ao nosso Guru a capacidade de direcionar a sua energia mental para um só propósito, em plena força e em total capacidade de execução. A energia mental, distrai-se e dispersa-se, oscila entre diferentes modos de operação (vrittis). Aquele de segura a espada é dono da sua energia, e capaz de a se servir da sua força mental, ao invés de permitir que sua força mental se sirva de si mesmo. Quem afia a agulha da mente consegue perfurar as camadas mais superficiais (Maya) com mais leveza e facilidade. E tem que se demonstrar bem hábil e dotado de auto controle quem carrega a sua espada afiada e longa. E assim o é o nosso Guru. Sahasra = mil; śirasam = cabeças; śvetam = pureza; “Mil cabeças brancas.” “Mil cabeças”, uma forma de denotar a omnisciência e a omnipresença daquele que descrevemos. “Mil” é então um eufemismo de infinito. “śvetam”, é a palavra que dá o tom de complitude e equilíbrio a estas cabeças. ‘Śvetam’ significa ‘branco’. A cor branca tem o seu significado associado à pureza em todas as culturas do mundo. Branco é a cor mestre, primordial e de onde todas as cores se manifestam por rarefação do feixe de luz. As ‘mil’ cabeças, órgãos centrais daquele que descrevemos são centradas, equânimas, perspicazes e astutas na sua sensibilidade. A imensidão das cabeças por vezes soberbamente representada nas ilustrações e esculturas de Patanjali, são de facto avassaladoras de modo que um se sente humildemente entregue, e suscita naturalmente em um certo respeito. Respeito talvez dirigido a nós mesmos, ao universo e à mística da vida. E como há um plano divino, por onde mantendo-nos no caminho certo, um caminho do yoga, faremos a nossa parte, e fazendo essa nossa parte somos enriquecidos com alegria e poder. Pranamami = eu saúdo; patanjalim = sábio “A Patanjali (o sábio), seguem se as minhas Saudações.” Patanjali é de facto o guru a quem dirigi o este mantra de abertura da prática de Ashtanga. É a esta entidade que se dignifica todo o significado que expus a cima. E tal significado, assim colocado inteligentemente por extenso e com regularidade - entoando o mantra, faz com que a força e intensidade desta saudação seja sentida e vivida, ao expressar e ouvir genuinamente (de coração). Patanjali é então um sábio que redigiu os Yoga Sutras, como meio inteligível, lógico e racional, mas também devocional e revolucionário, de nos mantermos de acordo com o nosso plano divino, nosso dharma. Conseguindo integrar o yoga na nossa vida entendendo os procedimentos mentais, obstáculos da humanidade, uma fórmula para ir além das nossas limitações internas e ir até ao nosso potencial. Patanjali não deixa de ser uma figura um tanto mística, embora tenha deixado os Yoga Sutras - uma compilação de 196 versos, em 4 capítulos - pouco se sabe realmente sobre o autor. A lenda conta uma história intrigante de, como diz o nome Patanjali - da ‘serpente caída’. Talvez quem redigiu esta obra marcante, dilui-se na sua obra. E por essa obra conhece-se o autor. Que foi de facto, no seu tempo, algo generoso deixando para a Humanidade eternamente este presente poderoso, como uma semente fértil que cada um pode nutrir e ver desenvolver-se no grande potencial singular unificador que cada um é naturalmente. Sergio Ramos 20/7/2022
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